Eu dançava, girando e girando. O mundo todo cabia debaixo dos meus pés. O suor escorria pela testa, caía uma gota no meu olho e então eu fechava os dois olhos com força e girava e dançava, com os braços abertos, abraçando a brisa, tentando segurar o nada e sentindo o coração subir e descer, quase saindo do peito. Ali, lembrei do pé de goiaba e daquelas goiabas verdosas que eu pedia ao meu avô para tirar do pé, puxando dos galhos mais baixos na fazenda onde cresci. Dançando, lembrando e girando, enquanto os meus pés latejavam, mas mesmo assim, não conseguiam parar. Era como quando eu andava descalça nos trilhos do trem, pisando nas britas, nos espinhos, os pés sujos de barro, pegando o caminho de volta, depois de descer a ladeira em direção à biblioteca. Eu avistava a praça de longe e nem pensava em parar para sentar no balanço ou descer no escorregador de cimento, só queria chegar em casa, passar pela cozinha, comer um milho cozido e ouvir “vai tomar banho, menina! Depois vem aqui para pentear os cabelos!”.
O cheiro de café pela casa, os azulejos verde-claros, o chuveiro de bica. Lavava tudo, escorria o barro dos pés, a terra do corpo todo começando pelos cabelos, sentindo cada nó no emaranhado dos fios. Gritava “Vó, terminei!”, saía à sua procura pela casa e sentava aos seus pés - aqueles pés, para mim, sagrados - como se fosse uma oração, enquanto o pente de plástico passeava pela minha cabeça e ela, admirada, como se estivesse vendo pela primeira vez os meus cabelos volumosos, pesados, embaraçados, cheirava-os e suspirava “que coisa linda, que cabelo cheiroso, venha ver, Zé, olhe que beleza!”.
O peito começou a apertar um pouco, o ar ficou mais pesado e os pés ainda doendo, mas foi a dança das memórias, assim como a dança da solidão naquele momento, que me levou, sem que eu percebesse, até a casa do pé de goiaba, aquele lugar que eu via e recebia o amor desde o momento que acordava, até a hora de dormir. E era ali aos pés da minha avó, enquanto desembaraçava os meus cabelos, que eu entendia que cada pedaço da vida vale a pena se você tem alguém que te ama, penteando os seus cabelos.
VEM CÁ:
Eu quero fazer um pequeno agradecimento a você, que esteve aqui no primeiro ano da newsletter e escolheu ficar mesmo nos hiatos que tivemos ao longo deste ano. Eu gostaria de dizer que a gente não realiza um sonho sozinho, mas que os nossos sonhos são construídos com a ajuda das mãos das outras pessoas, e no caso do Projeto Ensaiando Palavras, essa realização só é possível por causa dos olhos e dos sentimentos dos meus leitores. E eu te agradeço por estar aqui comigo, me mostrando sempre que o que é real é o que importa. Obrigada e obrigada!
[Diário de escrita]:
Olha, vou confessar uma coisa, sobre o processo de finalização do meu livro: não pensei que seria tão difícil essa parte de desapegar e liberá-lo para os ajustes finais. É como se eu estivesse entregando meu filho recém-nascido para alguém cuidar de agora em diante, sem que eu tenha controle exclusivo sobre ele. Vai ser do mundo, o livro.
Desde o nosso último encontro por aqui, Lula ganhou a eleição no segundo turno (essa você sabe, claro!), eu me mudei, passei quase um mês arrumando coisas, caixas, móveis, lixando parede, pintando e fazendo a minha própria “cabana de escrita” (agora eu tenho meu próprio escritório, aiiii que felicidade \0/). Tá tudo no meu instagram @ensaiandopalavras, vai lá conferir! Com essa sobrecarga toda, quem fica de cantinho, só esperando a sua vez de aparecer? A minha escrita, claro. Mas aí eu fui, aos pouquinhos, abrindo espaço pra ela, e a bichinha foi se chegando de mansinho, de leve, respeitando os meus dias corridos e cheios de tarefa doméstica, preguiça, ansiedade, e tal e tal. Nesse entremeio, publiquei 3 textos na minha coluna da Folha de Alagoas: Fica, Gal, E só faltam 17 dias e Viver debaixo d’água.
Além da coluna no jornal, publiquei mais uma resenha aqui na Florita Urbana, do encantador e cortante Flor de Gume, de Monique Malcher.
Ah! Já ia me esquecendo: saíram alguns dos meus poemas e crônicas lá na Ruído Manifesto, vem cá conferir! Vou deixar aqui o instagram desse projeto literário contemporâneo fantástico para você conhecer:
[O livro da vez]:
Eu ganhei esse livro no ano passado de uma amiga muito especial, mas ainda não tinha lido. Enquanto olhava para a minha estante, procurando um último livro para ler ainda este ano, bati o olho em Flores e naquele pequeno momento, pareceu até que estávamos nos olhando rs. Eu não prestei atenção em nenhum outro. Com exceção da minha amiga, que havia lido antes de me dar de presente, eu não cheguei a ver nada sobre este livro e estava perfeito assim para mim, porque eu não queria mesmo nenhuma influência externa, mesmo que fosse muito positiva. Enfim, estamos passando um tempo juntos, e eu não poderia ter escolhido nada melhor para ler nos últimos dias do ano. Flores trata de passado, resgates, memória, amor e perdão. As gerações que se transformam em mosaico, sobrepondo suas histórias, descobertas, caminhos e dores, tornam tudo ainda mais gostoso de ler. Afonso Cruz tem uma escrita tão sutil, parece que as palavras dançam diante dos nossos olhos. O único defeito deste livro é que toda hora eu quero parar para fotografar um trecho que me pegou de jeito para publicar no instagram ou mandar para alguém, então, siga esta dica: leia com o celular em modo avião e bem distante de você.
[Para assistir]:
Hoje eu preciso trazer para você, não uma indicação, como sempre, porque eu não consegui escolher entre essas duas obras de arte que me deixaram um pouco extasiada durante alguns dias.
The White Lotus, que já está na segunda temporada, reúne todos os elementos necessários para uma grande produção de sucesso. Não à toa, essa série é uma campeã de prêmios, desde a primeira temporada (foram mais de cinquenta prêmios, entre os quais dez Emmys, nas principais categorias da premiação).
Aqui, a Fabiane Secches pontua detalhadamente sobre o porquê dessa série ser uma explosão de audiência e de menções nas redes sociais, porém, um aviso: leia com calma, pois chega um momento que começam alguns spoilers, mas ela avisa antes. Vale a leitura!
E o que falar de Pinocchio, o novo filme de Guillermo del Toro, minha gente? Aquilo ali é magia, sutileza, arte, pura arte. Fiquei ainda mais encantada quando soube que o Guillermo del Toro passou 14 anos produzindo esse filme, que é uma animação em stop motion, aparentemente infantil, mas que tem um pano de fundo sobre perdas, luto, e um olhar político nas entrelinhas, abordando o fascismo. Pensando bem, não sei se o tema está assim tão nas entrelinhas. É bem claro tudo ali. O filme te leva até a sua infância, mas arrasta você de volta para a realidade durante o filme inteiro, quando coloca em perspectiva algumas das grandes dores que a gente enfrenta ao longo da vida.
[Ouvi enquanto escrevia]:
Depois de 22 anos de hiato, o Planet Hemp voltou. Um álbum de inéditas que toca (sempre foi assim, aliás) em inúmeras feridas sociais do nosso gigante Brasil, com suas músicas de protesto. Cada uma delas é quase uma aula sobre sociedade e história, e quando os clipes entram na parada, aquilo tudo se transforma em um documento histórico. Forte, dançante, artístico, Jardineiros já começa com Marcelo Yuka falando: “quando o instrumento do medo não funciona, a gente adquire um poder inimaginável”. Depois disso, você já deve ter uma boa noção do que vem em seguida. Distopia é uma das minhas preferidas agora. Ouve e me diz depois!
[Um trecho]:
“O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção, que tem efeitos novamente na estrutura da atenção (...). Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda”.
O tédio profundo - Sociedade do cansaço (Byung-Chul Han)
[Sobre o podcast]:
Em 2022, eu lancei o Podcast Ensaiando Palavras, trazendo crônicas, reflexões e poemas. Se você ainda não conhecia, agora já pode fazer um tour pelos episódios e para quem também já se tornou ouvinte, um recado: em 2023, a temporada 2 volta com tudo, beleza?
Enquanto isso, já faz uma maratona, porque os episódios são curtinhos e trazem uma bossa bem gostosa de ouvir.
[E tem mais]:
- Os melhores livros de 2022, pela Quatro Cinco Um: a revista dos livros
- Capítulo três, a newsletter da @rutefeerreira que eu amo acompanhar e acho que você também vai gostar. Rute é escritora, tuiteira, posta as mais lindas fotos de fim de tarde no sítio e tem cara de que é uma amiga massa. Quero ser amiga dela. Tu quer ser minha amiga, Rute?
- Uma entrevista com Elena Ferrante, nesse pós-pandemia e guerra, com todos os seus significados e consequências.
- A mais recente newsletter da Carolina Ruhman Sandler sobre ansiedade, burnout e autenticidade em tempos de likes.
[Me encontre também]:
Ano 1 - (dezembro/2022)
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Até a próxima!
Beijos, Nat <3
Mas que curadoria preciosa. Espero poder te ler mais ano que vem, Nat. Que os ventos de 2023 sejam mais suaves - tenho certeza que vão ser ♡