Edição #4 Experimentando histórias ficcionais
Os pingos batiam insistentemente em alguma coisa lá fora. Eu acho que eram bacias, ou latas, a sonolência não me deixava pensar muito, nem saber do que se tratava aquele objeto que estava tomando banho de chuva. Lembro do dia já claro e, a julgar pelos pequenos barulhos que lembravam a dinâmica cotidiana de uma casa, a manhã já avançava e meu estômago não parava de me lembrar de que eu não comia há pelo menos quinze horas.
Com a cabeça girando, a língua pesada como se estivesse presa no céu da boca e os lábios ressecados e grudados, tentei levantar, sem entender o que estava acontecendo e muito menos onde eu estava. Além daquele barulho de chuva martelando bem dentro no meu cérebro, ondas do mar vinham e voltavam, batendo em alguma rebentação, mas eu estava confusa demais para saber se era aquilo mesmo que estava acontecendo. Os lençóis que me cobriam tinham cheiro de maresia e avistei à minha frente dois quadrinhos com temática náutica, combinando entre si, mesclando listras brancas com azul escuro, molduras em madeira clara e pinturas de âncoras e cordinhas com nós de marinheiro. Uma decoração perfeita para o clima praiano do quarto. Mesmo com dificuldade de abrir os olhos, com um aberto e outro fechado, tentando amenizar o zumbido que acompanhava a dor de cabeça, tentei perceber tudo o que estava ao meu redor para encontrar algo que desse alguma pista de onde eu poderia estar e de como fui parar ali.
Encarei uma porta de madeira entreaberta do lado esquerdo da cama e suspeitei que fosse o banheiro. Devagar, com a sensação de ter alfinetes no corpo inteiro e mal conseguindo pisar no chão, cheguei e era mesmo o que eu estava pensando. Procurei um espelho, pois precisava descobrir a minha verdadeira situação e achei curioso não ter nenhum. Nunca vi um banheiro sem espelho, pensei. Assim como o quarto, ele era todo enfeitado com barcos, âncoras, conchas do mar e listras. A cortina do box era feita de um plástico grosso, fosco e estampada de estrelas do mar. A chuva parecia diminuir lá fora e eu consegui ver através de uma janelinha que ficava na parte acima do chuveiro que o céu já estava quase sem nuvem. O sol já parecia sorrir. Eu queria tomar banho, mas tive medo de mexer em qualquer coisa daquele lugar que não conhecia um centímetro sequer. As coisas estavam turvas, eu enxergava tudo esfumaçado. Apesar do tempo que parecia se abrir em um lá fora até então desconhecido, eu era toda neblina. Embora desorientada, não sentia medo.
Lavei o rosto, fiz um bochecho e prendi o cabelo com um coque. Era a única ação possível naquele emaranhado de nós que impediam os meus dedos passar por eles. Não encontrei a toalha e, ainda tonta, voltei ao quarto e sequei o rosto com o cobertor.
(continua na próxima edição…)
[Diário de escrita]:
Às vezes a gente acha que as nossas dificuldades são muito maiores do que elas realmente são, porque parece que apenas nós estamos passando por elas. Você lembra que na edição passada eu falei aqui que andava meio travada nas minhas produções? Pois bem, ainda estou vivendo minha criação como em câmera lenta e, quer saber? Decidi acolher esse deserto de ideias e respeitar o tempo da minha criatividade.
Quando assumi os meus medos e deixei que eles fossem se dissipando com o passar dos dias, me permiti descansar e, ao receber textos muito acolhedores, onde me identifiquei profundamente, de algumas newsletters que eu acompanho e as autoras estavam passando por situações semelhantes à minha, de trava, desatenção, perdas de sentidos sobre para qual lado seguir aqui e aqui, eu me senti mais humana e parte de um todo que continua se esforçando e fazendo o melhor que consegue fazer. É reconfortante perceber que as nossas dores se tornam menores quando as dividimos entre nós.
O imediatismo dá a impressão de que o mundo está acabando e tudo precisa ficar pronto logo, e eu acho que isso está sempre nos impedindo de seguir adiante, porque fica parecendo que o resultado é muito mais importante que o processo. Os caminhos importam muito e “todo erro é sublime”, como dizia Pina Bausch, coreógrafa e dançarina alemã.
Apesar disso, nos últimos meses eu venho participando de alguns cursos e oficinas que estão movimentando muitas estruturas no meu processo (será que ficar travada foi aquele recuo que a gente dá quando está muito perto de avançar em algo?). Com a Go, writers, eu passei 6 semanas em uma turma da Jornada Agogô que ganhou o nome de “Pequenas epifanias” e foi exatamente isso que ela despertou em mim desde o começo, com suas referências de leituras, autores, obras e tudo o que envolve arte em geral. Nos despedimos no sábado passado e essa oficina continua reverberando tanto. Comecei também uma oficina com Aline Bei, autora de “O peso do pássaro morto” e “Pequena coreografia do adeus”. Tivemos apenas a primeira aula e já foi o suficiente para explodir a certeza de que nada deve me impedir de começar a escrever o meu livro novo e, por fim, no feriado do dia 21/04, eu participei de uma aula avulsa da Oficina Textando com a Tayná Saez, do Sutilezas Atômicas e já quero participar de todas as outras aulas. A Tay abraça a gente com os exercícios, sugestões e com sua playlist maravilhosa pra nos ajudar na escrita. Eu não poderia estar melhor acompanhada no meu retorno criativo.
[O livro da vez]:
De Aline Bei, eu só posso esperar uma leitura apaixonante, mesmo que a história seja dolorosa, que ela trate de perdas, abandonos, solidão e amores repartidos. Mas não é quase sempre assim a nossa vida? Então, aproveitando a empolgação por estar participando de uma oficina tendo Aline como minha professora, resolvi trazer para você uma resenha que publiquei no final do ano passado, no Instagram da Florita Urbana, que fala de seu último livro:
Pequena coreografia do adeus começa a nos embalar com delicadeza já a partir de seu título e lá dentro das páginas é que o espetáculo acontece: cada palavra dança como se fosse um balé daquilo que se sente. Quando você ler o livro, entenderá a referência. Júlia, a protagonista, é fruto de uma família expressivamente solitária, um pai indiferentemente bom, uma mãe aparentemente narcisista. É como se ela fosse o centro de todas as mágoas que chegam sempre aos limites de cada personagem envolvido. Uma família que sente muitas dores diferentes e elas sempre se esbarram. E crescem.
Enquanto eu lia, ia sentindo o meu corpo quase sempre sobressaltado, ainda procurando ritmo e equilíbrio a cada página, porque a gente vai se sentindo meio Júlia, quando o tempo da vida vai passando e as urgências e carências vão surgindo à medida do nosso tamanho no mundo. O tamanho dos nossos desejos de receber amor. Júlia quer ser amada (e nós também, como não se identificar?). Ela se apega a cada pessoa que vai chegando em sua vida e, mesmo que nem sempre elas possam ficar, a nossa protagonista segue sentindo, escolhendo acreditar que o próximo alguém talvez decida não ir embora. Ela insiste em não desistir.
Aline Bei escreve de um jeito tão lindo e gostoso de ler que você vai mergulhando no livro e não sabe mais como sair dele. Esquece que tem reunião marcada e que tem que preparar o almoço. É o tipo de livro que a gente lê com uma taça de vinho, em um local silencioso, agarrada à nossa própria companhia.
A gente se abre para guardá-lo dentro de nós.
~ e já que estamos falando de livro, no próximo dia 02 de Maio vai começar a Feira de livros da Unesp. Se liga e já prepara a quebra do cofrinho. Vai ter desconto de 50% pra cima!
[Para assistir]:
Eu sou completamente apaixonada por esta série. É um tipo de história que me agrada, porque sou bem chegada a muito drama, e conflitos, e reconciliações, e amizade, e amor, amor a cada episódio. Um grupo de amigos muito próximos precisa recomeçar a vida após um acontecimento trágico com um deles, e para que suas vidas possam seguir adiante, muitos segredos vêm à tona e outras novas histórias surgem a partir das escolhas que cada um faz com o passar do tempo. Sabe quando você assiste a algo que parece banal, mas termina se perguntando o que teria feito se estivesse no lugar do personagem? “A million little things” (ou “Um milhão de coisas - título que você encontra na Globoplay) faz isso com a gente. Eu acho o estilo da série um pouco parecido com “This is us” (que é uma outra paixão minha no mundo das séries), pelo seu caráter dramático e sua história que trata de temas bastante atuais (tem uma temporada que se passa no período da pandemia e os episódios são tão reais e honestos com todas as dificuldades que o mundo inteiro passou, que é impossível não se identificar). Não preciso dizer que ela é perfeita para maratonar no fim-de-semana, né? Já virou a frase das minhas indicações aqui: Perfeita para maratonar no fim-de-semana com pipoca e chocolate =)
[Ouvi enquanto escrevia]:
Hoje não tem música, mas escutei o episódio do Podcast Mano a Mano, do Mano Brown, que entrevista a ex-presidenta Dilma Rousseff e eu queria tanto que você pudesse ouvir também. Neste episódio, Dilma fala um pouco de sua história pessoal, política e de toda a sua trajetória até o golpe. Até aqui. Essa mulher, apesar da altivez na fala e da postura inabalável perante todos os acontecimentos que lhe atingiram diretamente, possui a sensibilidade e a empatia que faltam em muitos governantes do nosso país. Que papo incrível, riquíssimo e honesto que o Mano Brown teve com Dilma Rousseff. O cuidado e a preocupação com a população pobre, negra, indígena, o respeito às mulheres e a consciência de que nós somos uma potência capaz de mudar os rumos desse país, estiveram presentes em cada vírgula dessa conversa.
Alguns trechos da entrevista:
“Quem escravizou e o fez por 300 e poucos anos foi a elite desse país, é só isso que explica a insensibilidade dela perante o seu próprio povo”
“Eu vou te explicar um negócio sobre pedalada fiscal”
“Você quer falar disso?”
“Queeeero. Eu adoro falar de pedalada fiscal”
Brown dá uma risadinha: “assim que é”
"Havia uma certa dificuldade de me acusar de corrupção, o que que eles podiam me acusar: eu tava gastando muito com bolsa família, gastando muito com educação…” (sobre a acusação de pedaladas fiscais que desencadeou o golp… ops! impeachment)
“Eu fui objeto do machismo e da misoginia, mas não por foi isso que eu levei o golpe. Só por isso não. Eu levei o golpe porque eu representava um projeto”
Tá aqui, é só dar o play:
[Um trecho]:
“Encontrar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita vai te salvar. Não ter um tema para um livro, não ter ideia alguma para o livro é se encontrar ou reencontrar diante de um livro. Uma imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de uma espécie de uma escrita viva e nua, terrível, terrível de superar”.
Livro: Escrever - Marguerite Duras
[Sobre o podcast]:
“Quando vai chegar a minha vez?” É o episódio mais recente do Podcast e eu trouxe para você alguns questionamentos sobre o tempo das coisas e de como a gente espera que tudo aconteça de imediato e da maneira que idealiza. O tempo gira em si mesmo e a gente tem mais é que confiar que as coisas estarão em seus lugares quando for o real momento delas. É sobre ter confiança e paciência.
Vem cá ouvir:
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Ano 1 - (Abril/2022)
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